Enxergando além das aparências
O que é a Química para nós? Da resposta que damos a essa pergunta depende o modo como a ensinamos. Em geral, começamos por apresentar a diversidade dos materiais a nossa volta, com suas diferentes propriedades: cores, dureza, maleabilidade, fluidez, volatilidade, combustibilidade, etc. Apresentamos também suas transformações: as mudanças de cor, odor, liberação de gás, de calor, etc., indiciam a formação de novas substâncias. Tudo isso está à vista de todos, e pode ser vivenciado no cotidiano. Mas, do ponto de vista da Química, não nos contentamos com isso. Queremos explicações para esses fenômenos. Já há bastante tempo que as explicações preferidas pelos químicos envolvem átomos, moléculas, íons – enfim, entidades que não podem ser vistas ou sentidas diretamente. Como explicamos a nossos alunos por que o óleo de cozinha não se mistura com a água? Dizer que não se misturam porque o óleo é insolúvel na água é apenas uma tautologia. Nossa explicação envolve modelos submicroscópicos de estruturas diferentes para as moléculas de água e de óleo, e de como elas interagem. Ensinamos, enfim, nossos estudantes a enxergarem além das aparências, a entender que o que se descortina a nossos olhos possui causas invisíveis e complexas.
Analogamente, todo cidadão deveria ser capaz de enxergar além das aparências, em busca das causas subjacentes aos fenômenos que passam diante de suas vistas. No cotidiano, em especial quando se aproximam as eleições, são repetidos à exaustão bordões como “todo político é igual”, “todos são ladrões”, ou “só querem o poder”. Fica-se assim na superfície e se deixa de considerar o que está subjacente. É necessário pensamento crítico para entender a quem interessa esse discurso da desmoralização da política, e também para entender que se encontram em jogo no momento dois projetos de país. Um deles, o de construção de um país soberano, que busca diminuir a sua imensa desigualdade social, colocando seu potencial em proveito da geração atual e das futuras. O outro projeto é o retorno à condição de colônia, em que nossas riquezas agrícolas e minerais são exploradas de maneira predatória, em proveito de muito poucos no presente imediato e sem preocupação com o que será das gerações futuras. Ironicamente, este segundo projeto encontra-se triunfante no ano em que se deveria comemorar os 200 anos de independência, daquilo que seria a superação da condição de colônia de exploração. Se observamos hoje a marcha da bárbarie (representada pela violência, intolerância a qualquer forma de diversidade e pela ignorância soberba) contra a civilização (representada pela democracia, pelo respeito à vida humana e pela valorização da educação e da ciência), devemos procurar entender quais são as causas subjacentes (não exatamente invisíveis, mas invisibilizadas) a essa realidade – o que não deixa de ser um esforço de reflexão crítica semelhante ao que fazemos na Química.
Fiel a sua missão de ajudar educadores e educandos a pensarem a Química e seu ensino para além das aparências, Química Nova na Escola apresenta mais um número a seus leitores. Complementando a edição anterior, apresentamos mais um artigo patrocinado pelo CFQ no âmbito do “Movimento Química Pós 2022 – Sustentabilidade e Soberania”, intitulado “As faces do plástico: uma proposta de aula sobre sustentabilidade”. É claro que as questões sobre ambiente e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável não podem ser apenas objeto de um número especial, mas uma temática permanente nas páginas de QNEsc. Assim, temos mais dois artigos que remetem a essa temática, a saber: “A Educação Ambiental no Ensino Médio: desafios e possibilidades a partir da elaboração de uma sequência didática com ênfase nas emissões de CO2 equivalente”, e “Plástico no Mar: Polímeros à Deriva!”. Ambos analisam intervenções didáticas com alunos do Ensino Médio de escolas públicas. Dois outros artigos tratam de aspectos da experimentação no ensino, com abordagens diferentes. Em “O estudo da teoria ácido-base de Lewis a partir de reações com substâncias fenólicas de plantas medicinais”, os autores propõem um experimento de simples execução, utilizando extratos vegetais. As autoras de “A saga do repolho roxo no ensino de Química”, por sua vez, fizeram um levantamento e análise de trabalhos publicados que utilizam o repolho roxo em contextos didáticos. Além dos conceitos de ácido-base que aparecem nesses dois artigos, outros conceitos também são abordados nesta edição. Um deles é o de estrutura espacial de moléculas, que foi alvo de uma intervenção didática descrita em “Estudo das funções da Química Orgânica com o uso do kit molecular de aprendizagem Atomlig”. A aprendizagem
conceitual também é a preocupação dos autores do artigo “Sequência de ensino investigativa para o ensino do conceito de quantidade de substância (mol)”, no qual se apresenta uma proposta que envolve metacognição e trabalho experimental. O desenvolvimento do pensamento químico pode ser especialmente desafiador para alunos surdos, o que ressalta a importância da contribuição contida no artigo “A elaboração do conceito de transformação química em uma perspectiva bilíngue bimodal”. Além da aprendizagem de conceitos, outros objetivos para o ensino de Química merecem atenção no artigo “Uma discussão sobre a descoberta do tecnécio à luz de alguns aspectos da natureza da ciência”. O engajamento dos estudantes nas aulas de Química pode se beneficiar dessa e de outras abordagens que ampliam sua visão sobre a ciência, bem como do recurso a diferentes gêneros literários, como se pode ver em “Contos para o ensino de Química: uma abordagem investigativa”. Seguramente, a concepção de metodologias alternativas só é possível se os professores estiverem bem instrumentalizados – daí a importância de se refletir sobre a formação e a prática de professores, temática presente em dois artigos desta edição. Um deles mais uma vez destaca a relevância do programa de bolsas de iniciação à docência: “Evasão e permanência em um curso de Licenciatura em Química: o que o PIBID tem a oferecer?”. O outro artigo, intitulado “‘É, na aula de Química eu não vejo alguma possibilidade’: as vozes de docentes e discentes sobre a Educação Sexual no ensino de Química”, investiga possibilidades de inserção da Educação Sexual em aulas de Química, analisando os pontos de vista de professores e alunos do Ensino Médio sobre o assunto.
Desejamos que a leitura desta edição de QNEsc propicie aos leitores reflexões úteis para sua prática profissional e sua vivência cidadã.
Paulo A. Porto
Salete L. Queiroz
Editores de QNEsc