A inteligência artificial entre nós
Há cerca de um ano, foi lançado o ChatGPT, que se popularizou e trouxe discussões sobre o uso da inteligência artificial em diversos ramos de atividades. Bem antes disso, em 2020, reportagem de Thiago Domenici para a agência de notícias Pública revelou que uma rede de instituições universitárias privadas utilizava um software de inteligência artificial para “corrigir” e atribuir notas a atividades textuais produzidas pelos alunos – sendo que os professores dessas instituições eram orientados a não compartilhar essa informação com os estudantes. iCom a facilidade de acesso atual a ferramentas online como o ChatGPT, se pode conceber a curiosa situação em que um aluno pede a um chatbot que escreva para ele um trabalho, que será então “corrigido” e avaliado por outra máquina de inteligência artificial. Nesse caso, em vez de a tecnologia servir como um intermediário para a negociação de significados entre seres humanos (alunos e professores), teremos um ser humano servindo como intermediário para levar informação de uma máquina a outra.
Embora esse cenário distópico ainda esteja distante da maioria das escolas, o acesso a internet vem aumentando no país: dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil apontam que, em 2023, 84% dos domicílios brasileiros têm conexão com a redeii. Apesar da existência de muitas desigualdades no que se refere a esse acesso, a tendência é que cada vez mais estudantes estejam conectados. Diferentes níveis de governo têm procurado levar a internet até as escolas, o que conduz a reflexões sobre quais usos estão sendo feitos dela. Nos EUA, por exemplo, há escolas públicas que atendem a populações menos favorecidas testando um chatbot de inteligência artificial (desenvolvido por uma ONG financiada por grandes corporações) cujo papel seria o de um “professor auxiliar”. De acordo com reportagem do New York Times, os resultados ainda são controversos, havendo relatos de que o chatbot forneceu respostas incorretas e também respostas diretas, que não davam espaço para os alunos formularem seus próprios raciocíniosiii. No Paraná, a Associação de
Professores tem alertado para a obrigatoriedade do uso de diversas plataformas digitais imposto pelo governo daquele estado, ao mesmo tempo em que a contratação de professores por concurso público é reduzida. Alguns gestores públicos talvez tenham entre seus sonhos de “eficiência administrativa” a substituição de professores por plataformas ditas “educacionais”. Essas ferramentas, que aparentam ser o que existe de mais moderno, podem ser consideradas como versões atualizadas das “máquinas de ensinar” desenvolvidas pelo psicólogo estadunidense B. F. Skinner (1904-1990) na década de 1950iv – agora dotadas de grande sofisticação, mas sustentadas pelos mesmos pilares filosóficos. Está claro que as novas tecnologias vieram para ficar, e terão seu lugar em todos os níveis de ensino. Assim, caberá aos professores e formadores de professores aprender a lidar com elas e explorar todo seu imenso potencial educacional – não para a domesticação e controle das novas gerações, mas para que as tecnologias ajudem os jovens a compreender, criticar e transformar a realidade.
Convidamos os leitores e leitoras de Química Nova na Escola a se juntarem a esse esforço investigativo das potencialidades educacionais das novas tecnologias que surgem a cada dia, e que possamos ver relatos sobre essa temática em edições futuras. Um exemplo pode ser visto neste número: a seção Educação em Química e Multimídia traz um artigo que descreve o desenvolvimento de um software destinado ao ensino de química orgânica. Sabe-se que a visualização espacial de moléculas orgânicas pode ser desafiadora para muitos estudantes, e os recursos oferecidos pelas interfaces gráficas são importantes aliados para o ensino. Os detalhes sobre esse programa podem ser vistos em “Software SAE: um recurso multimídia alternativo para o ensino de substituições aromáticas eletrofílicas”. Outra tecnologia, que permite simular as cores percebidas por pessoas com daltonismo, auxiliou os autores do artigo “Uma representação acessível da Tabela Periódica para estudantes daltônicos” a desenvolverem um material didático voltado a pessoas com essa condição. O material didático resultante representa uma contribuição para nosso ideal de levar o conhecimento químico para todos. Esse ideal pode se manifestar de diferentes maneiras, seja pela inclusão de pessoas com deficiência no contexto escolar, seja extrapolando as fronteiras escolares em atividades de divulgação científica para jovens, em ambientes não formais. Uma experiência desse último tipo é analisada na seção Cadernos de Pesquisa, em artigo intitulado “The chemistry club as a space for promoting the scientific spirit”. Os participantes do referido “clube de química” demonstraram ter desenvolvido competências científicas ao longo de um semestre em que realizaram atividades investigativas de diversos tipos, de natureza teórica e experimental. A utilização de experimentos como recursos didáticos contextualizados e criativos, de modo a contribuir para o exercício de posturas ativas e críticas pelos estudantes, também está presente no artigo “Atividade Experimental Problematizada (AEP) e Educação Ambiental (EA): presença de metais pesados em aterros sanitários – uma proposta didática”. A aproximação entre a química e a educação ambiental oferece oportunidades para abordagens interdisciplinares – que também estão presentes em outro artigo, em registro bastante distinto. Aqui nos referimos ao artigo “O conto literário no ensino e na formação de professores de Química”, que investe na interface ciência-literatura, sugerindo a discussão de aspectos da natureza da ciência a partir de contos de Machado de Assis e Rachel de Queiroz. Somando-se a esse conjunto de contribuições que exploram aspectos tão diversos do ensino de química, o artigo “Concepções de problematização no ensino de química: uma análise nos trabalhos publicados no periódico Química Nova na Escola na última década” oferece importantes reflexões teóricas. Ao analisar a multifacetada apropriação do conceito de problematização por educadores em química, observa-se a viva influência do mestre Paulo Freire, e de outros pesquisadores inspirados por ele, sobre tantos autores que acreditam no potencial transformador da educação.
Desejamos a nosso público leitor uma jornada proveitosa por mais esta edição!
Paulo Alves Porto
Salete Linhares Queiroz
Editores de QNEsc
Notas
i https://apublica.org/2020/04/laureate-usa-robos-no-lugar-de-professores-sem-que-alunos-saibam/. Acesso em nov. 2023.
ii https://cetic.br/media/analises/tic_domicilios_2023_coletiva_imprensa.pdf. Acesso em nov. 2023.
iii https://www.nytimes.com/2023/06/26/technology/newarkschools-khan-tutoring-ai.html. Acesso em nov. 2023.
iv https://www.youtube.com/watch?v=vmRmBgKQq20. Acesso em nov. 2023.