Estudantes de São Paulo renovam a esperança na
Educação
Desde setembro, o sistema público de educação do estado de São Paulo vinha sendo ameaçado por medidas tramadas nos gabinetes do governo e que vazavam para as escolas ou para a imprensa: fechamento de escolas e deslocamentos de alunos para outras unidades. O conjunto de medidas, eufemisticamente chamadas de reorganização da rede, era justificado pela suposta existência de salas de aula ociosas, diminuição da população em idade escolar e migração de alunos para a rede privada de ensino. A organização das escolas em ciclo único (muitas escolas passariam a ter apenas alunos do fundamental 1, do fundamental 2 ou do ensino médio) traria ainda um suposto ganho de aprendizagem, argumento apresentado sem qualquer sustentação em estudos aprofundados ou estatisticamente consistentes. Um olhar mais crítico, no entanto, revela outras motivações: aprofundar o processo de sucateamento da rede pública de ensino, em curso há décadas no estado de São Paulo (do qual são poupadas umas poucas escolas na tentativa de manter as aparências), e abrir caminho para a futura terceirização de escolas para as chamadas organizações sociais. Coerente com a linha política do governador Alckmin, seu estado mínimo ideal, no futuro, não precisaria gastar dinheiro com educação básica no momento em que todos os estudantes houvessem migrado para as escolas privadas, fugindo dos escombros a que estarão reduzidas as escolas públicas. No início de novembro, surgiu, então, um foco de resistência: os estudantes da rede pública passaram a ocupar suas escolas em protesto contra os planos do governo e, em muitos casos, com apoio de pais e professores. Em reunião com dirigentes de ensino, em 30/11, o chefe de gabinete da Secretaria da Educação de São Paulo literalmente declarou guerra aos estudantes. O que se viu, nos dias que se seguiram, foi a violência da Polícia Militar, que chegou a invadir escolas – ainda que não houvesse autorização judicial para reintegração de posse – e a dura repressão às manifestações de rua dos estudantes com o uso de bombas, cassetetes, espancamentos e intimidações diversas. Ainda que convenientemente escondidas pelas grandes corporações de mídia, tais manifestações de autoritarismo do governo Alckmin circularam pela internet. Ao mesmo tempo, circularam também as imagens dos estudantes zelando por suas escolas, cuidando da limpeza e organização e mesmo colocando em funcionamento equipamentos há muito abandonados. Talvez preocupado com sua popularidade, já comprometida pela incompetência na gestão dos recursos hídricos do estado, o governador Alckmin retrocedeu e suspendeu (ao menos por ora) a reorganização da rede pública de ensino. O aspecto mais positivo desse episódio, entretanto, foi finalmente ver a população se organizando e defendendo a escola pública. Mais importante: ver que os estudantes acolheram as escolas como suas – mesmo com tantas carências, com tantos problemas, os estudantes, ao se verem ameaçados de perder o pouco que o Estado ainda lhes oferece, decidiram defender o que lhes é de direito. Uma brisa de esperança que sopra nesses dias conturbados e que esperamos não se esgote nesse episódio: que a mobilização dos jovens continue e contagie a população brasileira na defesa da escola pública de qualidade.
Ainda em setembro, foi lançada a versão preliminar da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que deverá orientar toda a educação básica no Brasil (educação infantil, ensino fundamental e médio). A proposta é que esse documento receba críticas e contribuições de educadores de todo o país antes de ser encaminhado ao Conselho Nacional da Educação. O estabelecimento da BNCC busca padronizar parte do currículo escolar em todo país, sem deixar de contemplar uma parte diversificada a ser estabelecida em estados, municípios e escolas.
Embora esteja claro, ao menos para quem de fato atua no ambiente educacional, que os problemas fundamentais da educação brasileira não estão ligados aos currículos, a proposta da BNCC não deixa de trazer aspectos positivos. Destaca-se a preocupação em respeitar e valorizar a diversidade em suas variadas manifestações: diversidades humana, cultural e regional. Considerando as características geográficas e sociológicas do Brasil, essa preocupação é fundamental, especialmente no momento em que manifestações de caráter autoritário e fascista se multiplicam não apenas em nosso país, mas também em escala global. A incorporação de outros pontos ao debate contemporâneo acerca dos currículos igualmente se reveste de importância, tais como os temas integradores propostos na BNCC acerca da sustentabilidade socioambiental ou das tecnologias digitais que tanto impactam os recursos de informação e comunicação. Vale ressaltar que o documento preliminar da BNCC preserva a divisão curricular das ciências da natureza no ensino médio – afastando, por enquanto, a ameaça de reunir as disciplinas de biologia, física e química em um único componente curricular. O entendimento de que existem razões epistemológicas e históricas para manter o ensino dessas três disciplinas está de acordo com as mais recentes tendências da filosofia da ciência e do ensino de ciências. Isso não significa a negação de propostas de atividades interdisciplinares, mas o entendimento de que é necessária uma sólida formação disciplinar dos docentes para que seja possível um diálogo frutífero entre as áreas. Outro compromisso manifesto na BNCC, no que tange ao ensino de ciências da natureza, é que este não pode se restringir aos conteúdos cognitivos por si mesmos, mas que também abranja aspectos da natureza da ciência (construção histórica da ciência, impactos na sociedade e no ambiente, questões culturais e éticas, relações com a tecnologia etc.). A proposição dos eixos estruturantes do currículo de ciências da natureza – a saber: conhecimento conceitual; contextualização histórica, social e cultural; processos e práticas de investigação; linguagens das ciências – parece refletir contribuições de décadas de pesquisa em ensino de ciências na formulação do documento. Os elaboradores também se preocuparam em explicitar a ideia de que não existe contextualização sem conteúdo, procurando evitar uma interpretação errônea de diretrizes curriculares anteriores, o que levou alguns educadores a supervalorizarem o contexto ao custo do esvaziamento do conteúdo cognitivo das ciências. Um ponto que merecerá especial reflexão por parte dos professores de química é o lugar da química orgânica no currículo. Nessa versão preliminar da BNCC, esse conteúdo não constitui um bloco à parte, mas se encontra espalhada por várias unidades de conhecimento. Sem dúvida, trata-se de uma ruptura com a organização tradicional, cuja concretização exigirá empenho e dedicação dos educadores em química.
Enfim, a discussão da BNCC é muito bem-vinda. Certamente, esse tema voltará em breve às páginas de Química Nova na Escola.
Neste número de Química Nova na Escola, trazemos várias contribuições para que os professores de química possam, em suas aulas, continuar a oferecer algo de positivo para a educação brasileira. Um tema importante, pois relativo aos interesses de uma parcela da população historicamente oprimida, é a educação indígena, abordada no artigo Ensinoaprendizagem de química na educação escolar indígena: o uso do livro didático de química em um contexto Bakairi. Políticas públicas que têm grande impacto sobre a educação pública são também assuntos desta edição sob diferentes pontos de vista: o PIBID, abordado no artigo Perfil dos alunos de licenciaturas em química que atuam no PIBID e as influências para sua formação, e o ENEM, focalizado no artigo Noções de contextualização nas questões relacionadas ao conhecimento químico no Exame Nacional do Ensino Médio. Reflexões originadas na filosofia da ciência e voltadas para o ensino na atualidade são propostas no artigo Ensino de química: por um enfoque epistemológico e argumentativo. A seção Relatos de Sala de aula apresenta nesta edição três artigos, trazendo enfoques diferentes e bem-sucedidos, que podem inspirar outros professores em suas práticas: o uso de histórias em quadrinhos (Educação ambiental em histórias em quadrinhos: recurso didático para o ensino de ciências), de jogos (Banco Químico: um jogo de tabuleiro, cartas, dados, compras e vendas para o ensino do conceito de soluções) e de experimentos (Estudo de ácidos e bases e o desenvolvimento de um experimento sobre a ‘força’ dos ácidos). Refletindo a importância da experimentação para o ensino de química, dois outros artigos trazem propostas para atividades didáticas em laboratório: Estudo da solubilidade dos gases: um experimento de múltiplas facetas; e Eletroforese de DNA: dos laboratórios de biologia molecular para as salas de aula. Além dessa proposta, o DNA também é tema do artigo que apresenta o Prêmio Nobel outorgado este ano como tradicionalmente Química Nova na Escola tem feito (Prêmio Nobel de Química 2015: os mecanismos de reparo de DNA). São dois artigos com potencial para incentivar abordagens interdisciplinares, aproximando professores de química e biologia.
Boa leitura!
Paulo Alves Porto
Salete Linhares Queiroz
Wildson Luiz Pereira dos Santos