ENEM, a vítima da vez
O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), com mais de vinte anos de existência, é porta de acesso para as instituições de ensino superior públicas no Brasil. A edição de 2019, cujos resultados das notas individuais foram divulgados em 17 de janeiro do corrente ano, muito longe de ser a melhor “de todos os tempos”, conforme alardeou o ocupante formal do cargo de ministro da educação, Abraham Weintraub, foi marcada por erro na correção. A falha no processo, que causou aflição aos estudantes, foi atribuída pelo governo à gráfica Valid Soluções e supostamente teria afetado 0,15% das 3,9 milhões de provas. Embora, em termos estatísticos, o número de prejudicados não tenha sido grande (supondo que o número divulgado seja verdadeiro), o erro não deixa de ser grave, pois diz respeito não somente à logística ou segurança do exame, mas a seus próprios fundamentos, que têm a correção como um dos seus elementos fulcrais.
Outra ação oriunda do Ministério da Educação que tambémcausou grande apreensão, desta vez aos cientistas de todo o país, foi a publicação da portaria 2.227, de 31 de dezembro de 2019. Esta limitava fortemente a participação de servidores públicos em eventos científicos nacionais e internacionais, o que fragilizaria o sistema de produção e circulação do conhecimento no Brasil. A exigência de revisão da portaria, feita por várias entidades, dentre as quais a Sociedade Brasileira de Química (SBQ), surtiu efeito, sendo a mesma revogada este mês – repetindo o recorrente padrão de medidas escandalosas ou absurdas tomadas e, em seguida, canceladas pelo atual governo federal.
O fato é que aflições e apreensões como essas atingem a nós, educadores, quase diariamente nos dias que correm no Brasil. O que dizer sobre o memorando da Secretaria de Educação de Rondônia, com ordem para recolher das escolas estaduais obras literárias clássicas, de autoria de Machado de Assis, Euclides da Cunha e Mário de Andrade, dentre outras do mesmo naipe? O que pensar ao ouvir as seguintes palavras do governador do Estado mais rico do país: “São Paulo não remunera professores para ficarem em casa tomando suco de laranja e sendo preguiçosos”?
Quando conquistas culturais e respeito aos educadores e cientistas passam a ser vistos como artigos de pouca relevância, faz-se necessário que ainda mais esforços sejam envidados na formação de cidadãos críticos e cientes de que somente repúdio merecem ações de censura à literatura e de pouco caso com a educação, assim como com a geração e difusão do conhecimento.
Este número da Química Nova na Escola, mais uma vez, contribui para a concretização dos esforços rumo à formação cidadã, trazendo aos leitores um amplo leque de artigos, dentre os quais estão aqueles acerca de atividades didáticas que possibilitam a realização de práticas docentes pautadas na história e cultura africana, na história da ciência e na abordagem inclusiva.
A cultura africana está presente no artigo “Leite em ‘Mama’ África e a Educação para as Relações Étnico-raciais (ERER) no ensino de química”, enquanto a história da ciência aparece no artigo “Explorando os conceitos de oxidação e redução a partir de algumas características da história da ciência”. A educação inclusiva, que traz desafios ao ensino de química, tendo em vista a abstração do conhecimento a ele inerente, é abordada no artigo “Práticas docentes que podem contribuir para a inserção de alunos com síndrome de Asperger: uma abordagem inclusiva para o ensino de química”. A síndrome de Asperger é alvo de atenção pela primeira vez em QNEsc, e o texto disponibiliza elementos que servem de subsídio ao professor quanto ao entendimento das individualidades dos educandos com Transtorno do Espectro Autista (TEA).
A aprendizagem baseada em jogos é assunto único na seção Relatos de Sala de Aula, na qual são abordados recursos que propiciam a integração da criatividade e colaboração nos ambientes de ensino. Enquanto o artigo “Um jogo didático para revisão de conceitos químicos e normas de segurança em laboratórios de química” é inspirado no tradicional “jogo dos sete erros”, o artigo “Escape room no ensino de química” relata experiência ainda pouco usual no contexto brasileiro, pautada no emprego de salas de fuga. Os jogadores precisam escapar dessas salas e só conseguem fazer isso após a resolução conjunta de determinados enigmas.
O caráter inovador também está presente, agora com relação aos recursos didáticos digitais, no artigo “Stop motion no ensino de química”. O stop motion, técnica de animação quadro a quadro, teve a sua apropriação por parte de licenciandos investigada, bem como as suas percepções na elaboração e na proposição de estratégias nela baseada. Os resultados indicaram que os estudantes se tornaram produtores de conteúdo e atuaram ativamente em todo o processo.
Na seção Experimentação no Ensino de Química, os leitores irão encontrar o artigo “Experimentação no ensino de células galvânicas para o ensino médio”, que relata experimentos elaborados a partir de uma questão de eletroquímica integrante da prova de Ciências da Natureza e suas Tecnologias do ENEM de 2017. Os experimentos são executados por meio de dois kits contendo pilhas comerciais e células galvânicas alternativas. O material utilizado para montagem dos kits é acessível e de baixo custo, de modo a que possam ser facilmente reproduzidos nas escolas de educação básica.
Três artigos de cunho teórico ainda compõem este número: o primeiro trata das contribuições do PIBID para a formação inicial de licenciandos em química, a partir da análise de dissertações e teses; o segundo propõe e valida categorias que explicitam e aracterizam concepções prévias de professores sobre o planejamento de ensino; e o terceiro apresenta as concepções de ciência e conhecimento científico expresso por Antonio Gramsci nos Cadernos do Cárcere, em seus aspectos epistemológico, social e político.
Ótima leitura a todos!
Paulo Alves Porto
Salete Linhares Queiroz
Editores de QNEsc